sábado, 8 de dezembro de 2012

Crônica retirada de um poema retirado de uma notícia de jornal

Quando abriu a porta de sua casa, no morro da Babilônia, João Gostoso, na simplicidade de carregador de feira livre que era, sabia que estava saindo para cumprir uma missão. Qual, ignorava. Não tinha certeza. Tinha apenas uma intuição, vaga e esfumaçada.

Despreocupado, fechou a porta e invadiu a noite. Preocupar-se com a porta, por quê? Se cumprisse sua missão, as portas deixariam de existir para ele.

Só saiu da noite para adentrar o também escurecido bar Vinte de Novembro. Ali bebeu - uma cerveja - e a bebida lavou-lhe a timidez, o que lhe encorajou a cantar, e sua cantoria encorajou Gabriela, que levantou de sua cadeira e tirou João Gostoso para acompanhar-lhe em uma dança. Braços a segurar o corpo alheio, as sensações subindo e sendo bruscamente interrompidas pelo fim da música. Os corpos se distanciaram. João voltou as costas para Gabriela, que murmurou, como suplicando:

- Gostoso...

Era um elogio, uma cantada. Mas João não entendeu assim. Quem elogia falando o nome do elogiado?

Mesmo assim, João sorriu. E novamente invadiu a noite.

Foi até a lagoa Rodrigo de Freitas, onde arremessou o próprio corpo em desabalada alegria, adotando a água como última morada e tendo como último pensamento uma certeza: missão cumprida.

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A crônica acima - alguns devem ter percebido - foi inspirada no seguinte poema de Manuel Bandeira, intitulado "Poema retirado de uma notícia de jornal":

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.


A notícia de jornal, fico lhes devendo.

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