quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O arroto salvador

O mundo é um lugar muito confuso. Isso está em nossas caras desde bem antes de termos dentes ou de caminharmos: quando nenês, somos incentivados a arrotar no colo de nossas mães (às vezes pais) após uma sessão de amamentação - mesmo que isso resulte em um vômito espalhado no ombro, orelha, colo e o que mais tiver a ousadia de estar perto da boca de um nenê. O problema é que, algum tempo depois, somos severamente censurados ao arrotar. Depois de levarmos tapinhas nas costas e ouvirmos "isso!" no colo de nossos pais, passamos a ouvir "que falta de respeito fazer isso na frente dos outros! Que nojo! Seu porco!" pelo mesmo ato: arrotar. Que mundo estranho!

Talvez seja o arroto um elementos vitais que fez com que eu me tornasse um ser pensante e bastante crítico, até um pouco contestador. Refrigerante, água, cerveja, chimarrão, comida ou mesmo ar, não importa: eu arroto mesmo. Nunca dei atenção às repreensões que as pessoas fazem aos gases que eu disparo sem muita delicadeza boca afora. Gosto de me justificar com argumentos culturais: "No Oriente Médio, o arroto é sinal de boa educação. Quando arrota, o cidadão está mostrando que apreciou a comida ou a bebida que lhe serviram." Por pura lógica, as pessoas contra-argumentam dizendo "tu tá no Brasil e não no Oriente Médio, seu porco." É então que eu desfiro uma pergunta com força de golpe final: "prefere que o gás saia por cima ou por baixo?"

A verdade é que eu já tive provas que o arroto, por si só, é um argumento incomparável em uma discussão. Houve essa vez em um almoço, por exemplo. Minha mãe, sentada na ponta da mesa como uma boa chefa de família, estava ladeada por mim, à sua esquerda, e pela minha irmã, à sua direita. Não recordo qual era o cardápio, mas asseguro que estava saborosíssimo, uma vez que mamãe possui um conhecimento culinário de fazer inveja a qualquer um - principalmente a mim, um especialista em abrir enlatados e alimentos congelados pré-prontos. Seja lá o que estivéssemos comendo naquele almoço, estava de lamber os beiços. Prova disso é que estávamos calados, concentrados em mastigar e desfrutar o sabor do alimento preparado por mamãe. O silêncio só foi rompido por um arroto que veio do flanco esquerdo da mesa, onde minha boca tinha acabado de receber uns goles de refrigerante de cola não alcoólico.

Não é sem orgulho que assumo a autoria daquele arroto: veio do fundo do coração, como a mais inspirada composição de Tom Jobim. Mas antes eu tivesse mantido o silêncio da mesa... o arroto que disparei causou um deslocamento de ar que quase atirou minha família pela janela. Minha mãezinha, talvez tomada pelo susto causado pelo barulho de terremoto que não veio de um terremoto, deu início a um discurso repreensivo que Hitler jamais ouviria de Joaquim Barbosa.

- Mas que falta de educação! Que horror! Isso é jeito de se portar na mesa?! Eu tô cansada disso, isso é uma sem-vergonhice! - eu imagino que as aulas de natação e hidroginástica que mamãe frequentava naquele tempo estivessem dando resultado, porque ela sequer parava para tomar fôlego entre as frases. "Braba" é apelido. - Deus me livre, imagina se tem algum convidado na mesa...
- Mas não...
- Cala a boca que eu não terminei! - ela me interrompeu com mais eficácia do que aquele tiro que interrompeu o desfile de carro de John F. Kennedy - Isso não é coisa que se faça! Até parece que eu não dou educação a vocês! Será possível que não se pode nem almoçar em paz? Vocês sabem que eu detesto almoçar sozinha, mas puta que pariu, almoçar acompanhada e ter isso é demais pra minha cabeça! Eu não vou aceitar isso! Vocês não foram criados pra isso...

Era tão grave que minha mãe falara um palavrão em plena mesa. Metade de mim ouvia - a outra metade se arrependia de ter arrotado, de ter aprendido a arrotar, de ter tomado refrigerante, de ter nascido. Mamãe tinha o cenho franzido... que digo? Sua expressão de raiva naquele momento era a prova que o diabo existia e ainda por cima era artista plástico. Eu estava com os olhos abaixados para a comida, mas já não enxergava a comida. Já tinha perdido a fome. Eu nunca mais ia arrotar na vida. Eu nunca mais ia beber nada na vida. Eu ia processar a Coca-Cola e seria responsável pela derrocada do império de bebidas industrializadas no mundo inteiro. Porque meu arroto em plena mesa durante o almoço desencadeara um discurso raivoso da minha mãe, que já durava 5 minutos, contra todas as manifestações corporais que resultavam em ruídos maiores que 2 decibéis. Nenhum erro poderia ser pior. Se minha irmã subisse na mesa pra fazer um striptease usando a cruz de Cristo como poledance, minha mãe não estaria tão raivosa.

- Eu não quero mais saber disso! Vocês entenderam? - ela estava vermelha de raiva e roxa de falta de ar. E antes que eu pudesse articular um simples e borrado "sim" como forma de resposta, fui surpreendido por um novo arroto.

Da minha irmã.

Mas não foi um arroto qualquer. Se meu arroto veio do coração, minha irmã arrotou com a alma. E não com qualquer alma: provavelmente ela invocou a alma de todos os nossos antepassados enquanto mamãe discursava. Se meu arroto era inspirado como uma composição de Tom Jobim, Shakespeare teria colocado o arroto da minha irmã na boca de Julieta durante um beijo em Romeu. Eu estava tão ocupado ficando envergonhado com meu arroto que não percebi que minha irmã estava absolutamente quieta, talvez mais quieta que eu e talvez juntando forças para emitir aquela obra prima. Ela fez o meu arroto parecer um mero soluço. Aquele arroto foi tão destruidor que até hoje eu não sei o que faltou para a Defesa Civil interditar o bairro inteiro.

Nenhuma outra resposta seria mais eficaz como tréplica. Foi o melhor e mais científico argumento não apenas contra o discurso colérico de mamãe, mas contra qualquer discurso anti-arroto. Prova disso é que ela mal teve tempo de retomar o fôlego após a mijada verbal que me aplicou. Não sei se já havia esgotado suas energias; fato é que agora ela ocupava-se em rir. Ria de se contorcer. De faltar o ar, de correr as lágrimas, de doer o corpo. Minha irmã e eu, é claro, ríamos juntos. Triunfantes.

A parte ruim é que rimos tanto que a comida esfriou.

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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Fácil

- Tu fala como se fosse possível decidir parar de gostar de alguém.
- Mas é possível.
- Claro que não. Essas coisas a gente não escolhe.
- Escolhe sim. Essas coisas são como parar de fumar, sabe? É tão fácil que tem gente que pára de fumar 2 ou 3 vezes por semana.
- Ai, chato. É sério, essas coisas a gente não escolhe. Não dá pra mandar.
- Dá sim.
- Já tentou parar de gostar de alguém? Aposto que não consegue.
- Eu consigo.
- Já tentou?
- Já. Faço isso sempre.
- Sempre com que frequência?
- Sempre que eu te vejo.

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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Skol Design

Bonitas como uma ressaca

Há uma ironia peculiarmente bizarra na nova promoção da Skol, "Skol Design". São três kits diferentes - kit casa, kit quarto e kit mesa -, em edição limitada, sendo vendidas apenas pela internet.

De acordo com a propaganda veiculada na TV, as garrafas personalizadas são para combater a destruidora de interiores que responde como decoradora de interiores que pode ser uma namorada. Para evitar um cenário "família fofolete composta por amorzinho e amorzão", a garrafa personalizada seria ideal: vigorosa, máscula, viril, cruza do Odvan com o Materazzi. Uma pena que falharam miseravelmente, porque a garrafa não é vigorosa, máscula, nem viril: é simplesmente tosca. Feia pra dedéu. E feiúra não é sinônimo de virilidade. Se fosse, a Regina Casé era zagueira titular do Boca Juniors.

Mas nada disso é problema, porque para usar a garrafa como objeto de decoração, ela deve ter seu líquido consumido antes. E eis a grande e irônica sacada: só mesmo bêbado pra usar esse negócio como objeto de decoração.

- Cara, que ressaca...
- Pois é por isso que eu tô te ligando. Pra saber como tu tá.
- Péssimo. Baita dor de cabeça.
- Te falei pra pegar leve. Se comportou, ao menos?
- Nada. Liguei pra Julinha...
- Ah, tudo bem...
- ... na frente da Fernanda...
- Ela vai entender...
- ... pra falar sobre a Cris...
- Que confusão...
- ... que devia estar puta porque eu vomitei no cachorro dela.
- Ah, isso acontece.
- Bebi todas, cara. Até aquelas garrafinhas doidas que eu comprei pela internet. E o pior tu não sabe.
- O quê?
- Decorei a casa toda com aquelas garrafas.
- Porra, tá vendo? Falei pra tu pegar leve!
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