quarta-feira, 27 de março de 2013

Um pequeno gastrônomo sem noção

Sábado último aconteceu a Hora do Planeta. Pra quem não conhece, "a Hora do Planeta é um ato simbólico, promovido no mundo todo pela Rede WWF, no qual governos, empresas e a população demonstram a sua preocupação com o aquecimento global, apagando as suas luzes durante sessenta minutos", segundo o site do evento. Eu não dou bola para a Hora do Planeta porque tento consumir energia de modo mais responsável possível. A verdade é que eu precisaria de 1 milhão de eventos como a Hora do Planeta, porque há alguns muitos anos atrás aconteceu algo que me fez contrair uma enorme dívida com a Terra.

Eu devia ter 6 anos e já naquela época tinha a maldita mania de comer pelo simples prazer de mastigar algo, sem necessariamente ter fome - muita gente deve ter essa mania. O que piorava meu caso é que eu era adepto de misturebas sem o menor sentido. Era muito comum que, no almoço, eu tivesse um pacote de merenguinho (que gente muito fresca chama de "suspiro") ao lado do meu prato. Volta e meia um desses merenguinhos acompanhava uma colherada de arroz, feijão, galinha, ervilha, beterraba e outros. O merenguinho podia ser substituído por chocolate, salgadinhos industrializados e outras guloseimas que causam arrepios a nutricionistas renomados.

Meu almoço daquele dia certamente teve essa mistura. Minha memória não é lá essas coisas, então eu arrisco que eu devo ter almoçado guisado com vagem, arroz, feijão e... merenguinho. Findo o almoço, teve início uma bela tarde de sol de muita alegria e diversão com uma família do barulho - a minha. E é evidente que volta e meia eu abandonava a companhia dos meus entes queridos para mastigar alguma porcaria qualquer.

Passei a tarde fazendo visitas esporádicas à despensa. Como eu disse, minha memória não é lá essas coisas, de modo que eu não lembro com exatidão o que eu comi depois do almoço, mas posso muito bem imaginar. É provável que eu tenha comido um picolé metade creme, metade morango (que era chamado de "minissaia", veja bem), já que, depois do almoço, minha irmã e eu tínhamos a mania de correr atrás de um sujeito que, às buzinadas, empurrava um carrinho de picolés, como se a gente fosse policiais federais e o sujeito fosse o ladrão mais procurado do mundo.

E há uma grande chance de que eu tenha comido meio pacote de Fandangos, e depois outro meio pacote de Tostines, para depois abrir a geladeira e comer algumas fatias de mortadela, que devem ter sido seguidas por alguns merenguinhos e uns pedacinhos de chocolate, que por sua vez devem ter sido sucedidos por algum pedaço de galinha que havia sobrado do almoço do dia anterior. E é claro que isso deve ter sido regado a algumas colheradas de açúcar cristal puro, para depois comer a outra metade do Fandangos. E também a do Tostines.

Suponho que a simples leitura deste texto já esteja causando algum tipo de náusea nos meus leitores - sem contar os que já estão com um revertério avassalador. Se é esse o caso, peço que se acalme, porque a partir daqui vem a parte que eu lembro com uma clareza invejável: agarrei-me a uma lata de Nescau e, munido de uma colher, comi uma boa dose de Nescau puro. Que delícia! Pouco depois achei uma lata de salsichas na geladeira, degustando 1 ou 2 delas. Alguns minutos depois, a mágica teve início.

Minha barriga já devia estar há um bom tempo louca com aquela macumba gastronônica, aquela festa rave alimentar, mas só deu sinais de alerta quando já estava emitindo sinais de pânico completo. A mistureba fez nascer algum ser vivo não catalogado em nenhum planeta que me corroeu as tripas às bordoadas, como se minha barriga fosse a bateria de uma escola de samba composta por bateristas de thrash e black metal que usassem britadeiras ao invés de baquetas.

Acham que eu estou exagerando? Se sim, não deviam. Minha família, ciente das causas daquela orgia que estava rolando acima da minha bunda e abaixo dos meus pulmões, vendo que eu me contorcia de dor, me levou a um pronto-socorro - de nome "Prontoped", nunca vou esquecer. O médico que estava atendendo me deitou numa maca e, talvez para me acostumar ao caixão, mandou eu ficar esticado - o que era impossível, tamanha era a dor que eu sentia. O cara não me deixava nem cruzar as pernas! Resistir à dor era uma tarefa hercúlea. A cena era tão incrível que o profissional de saúde não acreditava no que estava vendo, e muito menos acreditava na narrativa da minha família. Aquela suruba tresloucada de todos os gêneros alimentícios conhecidos pelo ser humano era fisicamente impossível, de modo que ele deu o diagnóstico:

- É apendicite. Tem que operar imediatamente.

Eu juro. A mistureba que me deu uma dor de barriga foi tão babilônica que um médico achou que eu estava com apendicite. Hoje eu não o julgo mal: com a mistureba que eu fiz, é impressionante que ele não tenha diagnosticado um acidente vascular cerebral irreversível.

Imagino que, para minha mãe, deve ter sido difícil resistir à tentação de deixar que me operassem. Ela deve ter pensado: "Guri de merda, fica fazendo essa mistureba! Vai aprender a não fazer mais isso! Manda ele pra faca, doutor." Mas não, ela foi muito amável. Me pegou no colo, me levou pra casa e me enfiou goela abaixo algum remédio contra dor de barriga, esperando que meu aparelho digestivo processasse lentamente aquele ensaio de tsunami japonês seguido de desastre nuclear.

É bastante provável que, até hoje, nas horas de folga, meu aparelho digestivo ainda esteja executando a tarefa que iniciou quando eu tinha 6 anos. Por mais que eu economize energia, eu poderia participar da Hora do Planeta o quanto quisesse. Mesmo assim eu ainda agrediria a camada de ozônio - como de fato agrido, de vez em quando. Uma agressão que parece ser gratuita. Mas eu, humilde, peço perdão.

- Desculpa, camada de ozônio. É a minha apendicite.

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