quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Sobre a charge do Marco Aurélio e coisas ofensivas

(UPDATE: Segundo publicação do jornalista Rogério Mendelski em seu perfil no Facebook, Marco Aurélio foi afastado da Zero Hora. A decisão teria partido de Nelson Sirotsky, Presidente do Conselho de Administração do Grupo RBS e a informação teria partido do próprio Marco Aurélio, em conversa com Rogério Mendelski. Se for verdade, o caso é mais grave do que se pensa. O Grupo RBS afirma que Marco Aurélio está de férias e que o também chargista Zé Dassilva está cobrindo este período.)

Na falta de piadas sobre o assunto (resultado muito mais de uma exigência da população do que de um bloqueio causado pelo choque da situação), as pessoas viraram suas miras para outras manifestações. Esbravejaram contra o texto que o Fabrício Carpinejar escreveu horas após a tragédia ("oportunista", "sensacionalista", "piegas"), estranharam a frase "Faltou espaço para tanta dor", título do texto publicado por David Coimbra ("gafe").


A mira agora está na charge acima. Ela é de autoria de Marco Aurélio e foi publicada ontem pela Zero Hora. As manifestações vieram, implacáveis: "insensível", "ofensiva", "desrespeitosa", "de mau gosto", "ridícula" e "absurda" são apenas alguns dos termos usados por quem opinou. E quem estiver vendo essa charge pela primeira vez e achando ela ofensiva (como milhares de pessoas acharam), eu peço - imploro - que se acalme. Essa charge não é ofensiva. Nem desrespeitosa.

A charge, intitulada "Uma nova vida" (tenham este título em mente), ilustra um grupo de pessoas sendo recepcionados na "Universidade São Pedro". Segundo uma tradição popular (popularíssima, aliás), São Pedro é o porteiro do céu (além de responsável pelo setor climático).

Ao lado de São Pedro há um anjo que diz "Alguma dúvida, eu informo". E lá está São Pedro dando as coordenadas a quem chega: "Medicina na sala 7 com Zerbini", numa referência a Euryclídes de Jesus Zerbini, cardiologista brasileiro responsável pelo primeiro transplante de coração feito no Brasil e criador do Instituto do Coração (InCor), falecido em 1993. "Gente da pedagogia com Gilberto Freyre", talvez o único erro de Marco Aurélio, uma vez que a referência mais adequada seria Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira e falecido em 1997 e não o etnólogo e antropólogo Gilberto Freyre, falecido em 1987. Arquitetos com Niemeyer - esse mundialmente reconhecido, falecido em Dezembro último. Militares com Duque de Caxias - Patrono do Exército Brasileiro, morto em 1880 e considerado até hoje herói da pátria.

E há também um recém chegado que diz "Mãe, eu estou bem...", que talvez seja o maior motivo das críticas à charge, porque foram vários os celulares que tocaram sem resposta durante a tragédia. Pois essa frase está na charge porque representa a mísera vírgula de alento que os familiares das vítimas têm diante dessa catástrofe: eles estão bem agora. Estão em um lugar melhor. Alguém atendeu o telefone para tranquilizar quem chora, angustiado. E lembram do título da charge? "Uma nova vida", exatamente. A charge mostra os jovens dando continuidade aos seus sonhos, em um local que o imaginário popular definiu - de forma consensual, diga-se - como um lugar muito melhor que o nosso: o Paraíso. É uma antítese à famigerada combinação de palavras "sonhos interrompidos", proferida incansavelmente pela imprensa.

A charge de Marco Aurélio mostra exatamente isso: os sonhos dos jovens não foram interrompidos. Estão prosseguindo em um novo lugar, muito melhor, com a melhor das supervisões. Nada além disso. É um apelo quase infantil: se pedirem para uma turma de alunos da pré-escola para desenharem uma homenagem às vítimas de Santa Maria, a maioria vai desenhar jovens chegando no céu, no Paraíso.

E, mesmo assim, milhares de pessoas se ofenderam. Acharam-a ofensiva, como desagradados ficaram com o texto de Fabrício Carpinejar ou o título do texto de David Coimbra. Ultrapassou-se um limite: qualquer coisa é ofensiva. Qualquer manifestação sobre um assunto delicado e chocante é igualmente (ou ainda mais) chocante. É um gravíssimo caso de alucinação coletiva, onde todos enxergam chifres em cabeças de porcos. Mais um pouco e se chegará no nível dos muçulmanos, que se ofendem gravemente com um desenho de Maomé porque, segundo a lei islâmica, qualquer representação imagética de Maomé é proibida.

Estamos quase lá.

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