Trafegava pela pista da direita, a uma velocidade de 32km/h. Não que percebesse isso com tanta precisão - olhou de revesgueio para o velocímetro e viu o ponteiro um pouco além da marca de 30km/h. E olhou de revesgueio porque sabia que tinha que manter a atenção no trânsito. Vai que surge uma criança correndo e atravessa a rua? Vai que um ciclista se desequilibra?
Vinha tranquilo, deixando a pista da esquerda livre para alguém mais apressado, que quisesse arriscar uma multa por excesso de velocidade. Não era o caso dele. Era um motorista legal - tão legal que dirigia com as duas mãos no volante e era um dos poucos na cidade que parava na faixa de segurança, para deixar os pedestres atravessarem, como estava fazendo agora. O bom de ser motorista legal é incentivar os outros a serem também: ao parar na faixa de segurança, viu que o carro que vinha na pista da esquerda também parou. Estava satisfeito: dera o exemplo. Agora todos os pedestres podiam atravessar com tranquilidade. A mãe de mãos dadas com seu filho, o idoso que caminhava com alguma dificuldade, a senhora carregada com sacolas de compras e, na frente de todos, sua ex-namorada.
Poxa, também não precisava exagerar. Era isso que recebia como recompensa por ser um motorista legal? Permitir a travessia da ex-namorada? Não precisava de tanto. A moça lhe havia feito perceber como o corpo humano é estranho: entregara-se a ela de coração, ela lhe deu um pé na bunda e ele ficou com uma tremenda dor de cotovelo. Porém o tempo é o tempo, ajeita o corpo humano com paciência e ele se recuperou. Mas não é porque estava recuperado que ele podia ou precisava parar na faixa de segurança para ela, justo ela, atravessar. Se tivesse visto que era ela, não tinha parado. Não que fosse atropelar, só não precisava ter feito essa gentileza logo pra ela.
O pior é que ela viu que ele tinha parado. E ele viu que ela viu. Bosta. Agora ela ia pensar que ele ainda estava mal por ela, que ele ainda gostava dela e isso massagearia o ego dela e massacraria o dele, faria ela se sentir poderosa. Bosta. Ainda atravessou sorrindo. Bosta, bosta, bosta!
Isso não podia ficar assim. Tinha que fazer alguma coisa para desfazer o mal entendido. Não podia mandar uma mensagem pela internet pra ela, porque significaria estar se rebaixando, correndo atrás dela. Seria um atestado de que ainda sente algo por ela, mas não sente! Bem, um pouco de rancor, talvez. Descer do carro para explicar tudo a ela estava fora de cogitação, porque ela encararia isso como uma atitude desesperada. Claro, também ia deixar o carro abandonado no meio da rua e poderia morrer na contramão atrapalhando o tráfego - o que seria muito pior, porque ela gosta de Chico Buarque. O que fazer? O que fazer?! Eis que, de repente, teve uma ideia.
No outro dia, circulava com um grande adesivo colado no vidro traseiro dizendo "Cuidado! Eu freio para animais!"
Continuava sendo um motorista legal e não apelou para adesivos da família feliz.
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segunda-feira, 25 de novembro de 2013
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