terça-feira, 23 de setembro de 2014

Patrícia Moreira: racista ou torcedora?

Há poucas semanas, Patrícia Moreira foi demitida de seu emprego. Já Dick Advocaat mudou de local de trabalho em Julho desse ano.

Patrícia, torcedora do Grêmio, foi flagrada por câmeras de televisão em um estádio, xingando o goleiro adversário de "macaco". Além de ter perdido o emprego, viu-se impossibilitada de sair na rua, com medo de represálias de pessoas que concluíram que ela foi racista por ter xingado um adversário em um jogo de futebol - a casa onde morava com a família foi alvo de atos de vandalismo, sendo inclusive incendiada.

O xingamento que Patrícia berrou para o goleiro adversário gerou uma revolta babilônica e ela foi acionada judicialmente por injúria racial (artigo 140 do Código Penal Brasileiro, que de acordo com a legislação é diferente de racismo). Patrícia não foi a única: outros torcedores foram flagrados xingando o goleiro adversário de macaco. Mas há os torcedores que não foram flagrados pelas câmeras. Houve quem sugerisse "enfia essa bandeira no cu" ao bandeirinha; outro sugeriu "quebra esse filho da puta" a um jogador do seu time, porque o atacante adversário rondava o gol do Grêmio. E houve até quem xingasse jogador do próprio time, gritando "eu vou te matar, corno desgraçado" a um lateral que errou um cruzamento, enquanto outros disseram "te mata, filhodumaputa pau no cu" a um centroavante que desperdiçou uma boa jogada de ataque. E muitos concordaram ao berrar "ele tá sempre roubando, esse ladrão chupador de piroca" para o juiz, quando ele marcou uma falta no meio de campo.

A quem se ofendeu com o parágrafo acima eu peço perdão, mas é o que acontece em um estádio de futebol: as pessoas xingam. E xingam tanto ou até mais que Patrícia Moreira. No estádio, os torcedores cometem ameaças graves (artigo 147 do Código Penal), induzimento ao suicídio (artigo 122), difamação (artigo 139) etc.

O xingamento é corriqueiro no futebol porque este é um esporte não apenas físico, mas também psicológico. É normal que um jogador busque desestabilizar o adversário através de xingamentos - Zidane foi expulso na final da Copa do Mundo de 2006 porque desferiu uma cabeçada no peito de Materazzi, que havia dito "prefiro a puta da sua irmã". E não é apenas através de xingamentos que um jogador tenta desestabilizar o adversário: em jogos com pouco ou nenhum televisionamento, inúmeros são os casos de atletas que passam a mão nas partes íntimas dos seus adversários para que eles se irritem e sejam expulsos. Hoje, podem procurar auxílio na Lei 12.015/2009.

Torcedores também participam desse processo, xingando os jogadores do time adversário. Xingam também porque não admitem ver seu time perdendo - o que me parece ser o caso de Patrícia Moreira. E podem ir além: eu já vi torcedor cuspir em jogador que passava perto do alambrado. O termo "pressão da torcida" descreve isso.

Enquanto Patrícia tinha sua vida virada do avesso, Dick Advocaat, como já citei, iniciava uma nova etapa em seu ramo profissional. Para quem não o conhece, Advocaat é um técnico de futebol nascido na Holanda e foi contratado em Julho de 2014 para treinar a Seleção da Sérvia - o que é um absurdo.

Em 2008, Advocaat era treinador do Zenit, clube russo finalista da Copa da Uefa daquele ano. Um dia antes da final, ele afirmou que não queria jogadores negros no seu time e justificou dizendo que fazia isso porque os torcedores do time não queriam negros. Em 2012, os torcedores do Zenit deram uma nova demonstração de preconceito através de um manifesto contrário a negros e homossexuais.

Enquanto o Grêmio era excluído de um campeonato porque seus torcedores xingaram jogadores adversários, o Zenit da Rússia segue disputando competições europeias - mesmo com torcedores abertamente racistas. E enquanto Patrícia Moreira tinha sua vida drasticamente modificada, Dick Advocaat, conivente com um racismo imbecil, segue sua vida de treinador de futebol. Bem diferente de Donald Sterling, que foi banido da NBA e obrigado a se desfazer de seu clube, o Los Angeles Clippers, por mostrar-se contrário à presença de negros nos jogos do seu time.

Quando cito o caso do Zenit, de Dick Advoocat e de Donald Sterling, quero na verdade dizer que rejeito a ideia de que o racismo não existe. Ele existe. O que questiono é se Patrícia foi de fato racista, como de repente a esmagadora maioria da população passou a taxá-la. Racismo é uma aberração e um crime tão grave que parece que todos descartam a necessidade de raciocínio. A lógica que as pessoas adotaram parece ser: "uma vez que o racismo é um ato tão estúpido, quem faz algo que possa ter qualquer tipo de referência a ele deve sumariamente sofrer as consequências de alguém que claramente é racista".

(E acho questionável culpar a atuação da imprensa no processo que abalou a vida de Patrícia Moreira. Qualquer um que tenha acesso ao Facebook viu a quantidade de pessoas que voluntariamente vociferaram contra a atitude da torcedora - eu mesmo vi alguém se mostrar especialista em linguagem corporal em um único post onde avaliava a postura física de Patrícia ao xingar o goleiro adversário.)

Não estou querendo dizer que Patrícia Moreira está certa em xingar o goleiro de macaco. Estou na verdade estranhando o fato de, de repente, todo mundo notar que existe xingamento no futebol. Há muito tempo que o futebol não é um esporte exemplar (se é que algum dia já o foi). Nele há fartura de xingamentos e há também racismo (vide Zenit e Dick Advocaat), porém em escala muito menor do que parece. No futebol, a homofobia é um problema bem maior que o racismo. A reação ao simples selinho de Emerson em um amigo deixa isso claro.

O machismo é igualmente maior que o racismo no futebol. Mulheres são uma realidade nas arquibancadas - e só. Quando resolvem participar da arbitragem, suas atuações são resumidas a seus atributos físicos e seus erros são creditados ao seu gênero. Além do caso mais recente, envolvendo Fernanda Colombo, houve o caso de Ana Paula Oliveira, que por alguma coincidência não participou mais como bandeirinha em grandes jogos após ter posado nua para a Playboy. É comum que homens treinem equipes femininas, mas mulheres treinando equipes masculinas é tão raro que podem ser consideradas como casos isolados - lembro de um caso na quarta divisão paulista e um caso na segunda divisão francesa. E nem preciso falar da falta de prestígio que o próprio futebol feminino frequenta.

A luta contra o racismo (e o preconceito de modo geral) é falha porque prefere incluir atos de menor impacto (como um xingamento no estádio) a combater aquilo que deveria ser seu principal alvo: diminuir ou excluir alguém daquilo que se entende por sociedade.

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